O 18º dias no Camino vai ter um preâmbulo especial. Para comemorar um dia delicioso, sem chuva, sem frio, pedalando num jardim do Éden bastante povoado, como merece. Nós saímos de Portomarín pensando como teria sido nosso dia de ontem, caso o comerciante de Vilei estivesse correto. Se vocês se lembram, o dono da loja de souvenires, onde paramos à tarde para comprar imãs de geladeira, havia nos alertado para uma suposta falta de vagas nos albergues daqui e, para nos “ajudar”, fez uma reserva num tal de Hospital da Cruz, que ele dizia estar localizado 8km à frente, num caminho de descidas predominantes: “todo bajada!”, garantiu.
Mas, como já sabem os que leram nosso relato de ontem, nada disso se realizou, porque encontramos vaga, logo na primeira pousada que consultamos, ao lado daquela igreja “linda”, no centro da cidade. Além disso, meus mapas não indicavam nenhuma descida para o trecho que começa em Portomarín. Muito ao contrário, o gráfico de altimetria do percurso só me mostrava subidas íngremes, por certa de 10km, seguidas de subidas menos íngremes, nos seguintes 5km. Voltaremos depois a este assunto. Por enquanto, deixo um exemplo daquilo que eu chamo de Jardim do Éden bastante povoado.
Caminhantes, em grande número, percorrem o Camino, perto de CastromaiorLer mais
O 17º dia amanheceu com 2°C e sensação térmica de 1° C, mas parecia estarmos em um outro mundo. O céu cinzento e pesado tinha sido substituído por outro, azul e iluminado por um lindo sol, daquele tipo que Bia chama de “lâmpada de geladeira”, que não aquece, mas ilumina. Nós, então, envergamos nossas roupas de pedalar, novamente com todos os agasalhos disponíveis e, tendo notado, sem fazer muito alarde, que luvas, calçados e fundilhos das bermudas de pedalar não tinham secado completamente, tomamos um café da manhã animado, vendo o dia claro, pela janela do bar, e o já familiar contêiner amarelo lá fora, seco, brilhando sob o sol.
Entrando na geladeira
Às nove da manhã, saímos para buscar as bicicletas, que tinham ficado guardadas na garagem, ao lado do albergue. Fazia um frio cortante que, depois constatei no Gps, correspondia aos de 2ºC que vimos no aplicativo de clima. O sol, que fazia intermitentes aparições, entre nuvens apressadas, realmente, a nada esquentava. Nestas condições, mesmo as simples operações de preparo das bicicletas se tornavam, deveras, penosas. Encaixar alforges em bagageiros congelados pelo frio da madrugada, verificar a pressão dos pneus, acoplar os Gps aos encaixes de guidão e buscar a localização e o mapa do trajeto do dia nos aparelhos, foram o suficiente para fazer minhas mãos doerem de frio. Voltei para dentro do abergue e estimulei a circulação do sangue, movimentando os dedos no ambiente mais ameno do bar. Momentos depois, saímos outra vez e iniciamos a descida pela carretera, em direção a Triacastela.
Fonfría, primeiro vilarejo após o Alto do PoioLer mais
Hoje não tirei fotos, o que, por si só, já é um retrato do dia.
Ao levantar-me, verifiquei que nossos pitorescos varais não tinham secado totalmente as roupas. O Alto do Poio, onde estávamos, fica ao lado do vilarejo do Padornelo, que não se deve confundir com a cidade do mesmo nome, localizada bem mais ao sul, próximo da fronteira com Portugal. Com seus 1.335m de altitude, o Poio corresponde ao ponto mais alto desta parte do Camino que cruza o maciço do Cebreiro, cujo passo está um pouco abaixo, a 1.311m. Toda esta região apresenta um clima típico de montanha, geralmente frio e sujeito a bruscas alterações, mas, durante esta época do ano, não é comum enfrentarem-se ondas prolongadas de mau tempo, com temperaturas tão baixas como as observadas nesta primavera. A despeito disto, para o momento, meu aplicativo de clima indicava uma temperatura de 1ºC, com chuva fina, por toda a região, como pudemos verificar pessoalmente, pela janela do bar, depois de descermos para tomar nosso café da manhã, que consistiu, como era habitual, de duas torradas com manteiga e geléia e café com leite, preparado com café expresso e sem açúcar.
Bar do Albergue Santa Maria do Poio (foto baixada da internet)
Prisioneiros do Poio
Nem chegamos à metade do desjejum, quando Bia, desanimada com o mau tempo, que hoje se apresentava ainda pior do que ontem, quis, de novo, desistir. Propôs que eu prosseguisse sozinho, enquanto ela pegaria um táxi, já não para Triacastela, mais próxima, mas muito pequena, mas para Sarria, uma cidade de médio porte, que fica a cerca de 40km de distância, dentro do trajeto do Camino e de onde ela poderia pegar algum transporte em direção a Santiago de Compostela e, dali, para Portugal.
Eu, como da última vez, discordei veementemente do seu plano. Mais que depressa, estudei as previsões dos aplicativos de clima que tinha no iPad, e vi que permanecia piorando o prognóstico de chuva, com possibilidade de pequenas ocorrências de neve, além de ventos fortes, para todo o dia, mas que a previsão do tempo para o dia seguinte se mostrava bem mais animadora: um pouco mais frio do que hoje, mas com uma brisa moderada e, o que era mais importante, céu claro e nada de chuva. Propus, então, ficarmos descansando por este dia, aqui mesmo no Alto do Poio, onde estávamos, e seguir pedalando amanhã, com tempo e roupas secos.
Não era tarefa fácil convencê-la. Pudera, ficar naquele fim de mundo, além da tarde e noite de ontem, por mais um dia e uma noite inteiros, sem nada para fazer além de olhar a chuva cair lá fora e torcer por uma incerta estiagem no dia de amanhã, não era nada atraente. Mas, no íntimo, alguma coisa me dizia que a nossa perseverança seria recompensada. Arrisquei, então. Lancei, como argumento, tudo aquilo que eu não tinha, na realidade, meios de assegurar. E porque eu não tinha como saber se as previsões dos aplicativos se confirmariam, eu nada podia garantir. Mas, ainda assim, afirmei, com os ares da segurança que eu não possuía, que o trajeto até Triacastela devia ser muito lindo, porque nos daria uma incrível visão das paisagens da montanha, além do que, tratando-se de uma grande descida, nos levaria a um fundo de vale onde, como é normal, a temperatura seria mais alta, certamente… Certamente?
Num certo momento da nossa discussão de alternativas e possibilidades, fomos surpreendidos por um ruído de ventania inusual, que nos fez, os dois ao mesmo tempo, voltar os olhares para o lado de fora da janela do bar. Era uma rápida rajada de vento e neve, que esbranquiçou o capô de um carro que estava estacionado em frente e criou uma fina cobertura glaciar sobre a tampa de um pequeno contêiner de lixo, uma espécie de cubo de cerca de um metro cúbico, feito de plástico amarelo, que estava encostado num canto, do outro lado da estrada. Neve de primavera, como tal, derreteu logo, como se sumisse no nada, no meio da chuvinha fina e chata, que não parava.
O fato é que a previsão de tempo para amanhã, nos aplicativos que consultei, dizia de uma mínima de -4ºC e a máxima de 6ºC, para o Alto do Poio, que subia apenas um grau, para 7ºC, na localidade de Triacastela. Isto sem contar que esta máxima só aconteceria lá para o final da tarde, por volta das 17 horas, quando já teríamos chegado, se estivéssemos aqui tratando de um pedal comum e normal, para além de Portomarín, muitos quilômetros adiante.
Eu nem sei bem como consegui isso, mas, no final, minha proposta prevaleceu. Talvez eu tenha sido ajudado pela inércia, ou pela rajada de neve que presenciamos, ou, ainda, pela natural aversão à desagradável alternativa de tomar-se qualquer outra atitude que resultasse em ir para fora, em sair naquele tempo medonho. O fato é que Bia aquiesceu e, por consequência, ficamos por ali. Então, sem perder tempo, eu confirmei a disponibilidade do quarto para mais uma diária, com o dono do albergue, e ali permanecemos. No limbo, ficamos. Ora no quarto, sem janelas, ora naquele bar meio sujo, com suas cadeiras desconfortáveis e o barulho da tv, sempre no tédio e na incerteza. Estarmos retidos no Poio foi como estar preso sem condenação, ou como ser condenado por um crime que não se cometeu. Foi como ficar num lugar não escolhido, imposto por uma força incontestável, pelo destino. Dois, não mais no Camino, mas ilhados, pelo frio, pela chuva e pela neve, no Hostal Santa Maria do Poio.
Fachada do Hostal Santa Maria do Poio, em foto baixada da internet, vendo-se a janela do bar, sob o ombrelone mais à direita
Dia modorrento, dedicado a esperar, matar o tempo e mais esperar, transcorreu lentamente, por uma boa parte dele sem qualquer sinal de mudança na chuva e no frio que, da janela do bar, pudesse nos indicar a passagem do tempo. Excluindo-se a chegada de um casal de coreanos, que pediu ajuda para chamar um táxi, aguardou-o e se foi, e mais dois ou três resilientes peregrinos, que espiamos, pela janela do bar, chegarem para ficar ou passarem chapinhando pela estrada gelada, com suas capas impermeáveis e coloridas, vindos provavelmente de Liñares ou do Cebreiro, nada mais aconteceu.
O Túnel Pardonelo
Numa certa hora, Bia navegava na internet, quando encontrou uma curiosidade sobre o monte Padornelo, que supúnhamos corresponder ao pequeno povoado de Padornelo, que fica bem próximo de onde estávamos, um pouco deslocado do traçado da estrada que nos havia trazido de Liñares. Ela comentou a descoberta comigo e, juntos, conversamos e nos emocionamos com um relato surpreendente. Tratava-se da história da construção de um longo túnel ferroviário, de seis quilômetros de extensão que, de tão perfeitamente linear, suas duas entradas eram visíveis de seu ponto central, mais elevado e no coração da montanha, onde um poço vertical, utilizado como via de acesso de materiais e de retirada de entulhos, em sua construção, servira depois como canal de circulação de ar e condutor dos volumosos afloramentos de água, que brotavam das rochas da montanha para dentro túnel. Inaugurado no ano de 1967, era descrito como um grande feito de engenharia, mas que custou um alto preço, tanto em dinheiro como em esforço e sofrimento humanos. O “túnel 19” (ou 12, em algumas versões) contava a triste história de uma construção tecnicamente ousada para sua época, mas que se prolongou por 25 anos, causando a morte e o adoecimento de dezenas de operários. Contava também a história de uma vila, chamada Campamento Santa Bárbara, construída a partir do zero, num local próximo a uma das entradas do túnel, para abrigar os trabalhadores, e que fora abandonada, a partir do término das obras, tornando-se, então, uma pequena vila fantasma. Como não poderia deixar de ser, nossos pensamentos se voltaram para o drama daqueles pobres operários, sofrendo dos efeitos do pó das rochas, no fundo daquele poço, vivendo e trabalhando entre o topo e as entranhas da montanha, sujeitos ao mesmo frio e à mesma umidade que ora testemunhávamos. Depois, já de volta ao Brasil, procurando uma evidência do túnel, não consegui localizar nos mapas uma ferrovia que passasse próximo à região do Cebreiro e do Alto do Poio. Foi depois de muito procurar no Google Maps que descobri: o túnel de Padornelo se localiza nas proximidades da cidade de Padornelo, homônima, mas distante, por muitos quilômetros, bem ao sul do pequeno vilarejo de Padornelo, onde nosso exílio de um longo dia se passara.
As Estrelas do Mar
Voltemos, então, ao cárcere do Poio. Numa boa parte daquela tarde, aproveitei para revisar as notas de viagem, que me permitiam, com atrasos cada vez maiores, escrever estas recordações diárias, às vezes um pouco penosas, enquanto Bia descansava no nosso quarto-varal. Mas, como o wifi do albergue era tão precário quanto as demais instalações oferecidas e não havia sinal de celular, nisso também não se podia adiantar muito, porque o WordPress, que uso para escrever, precisa de conexão. Foi o suficiente, porém, para me saltar à vista como, nas minhas notas de viagem, se repetia, sem parar, uma mesma prosopopéia. Quem diria?—Vi, nas notas de ontem e nas de muitos outros dias também, uma admiração e, às vezes, revolta, frente uma coisa inumana! Um ente!—Logo eu, que sou um tanto descrente, me referindo ao Camino, a toda hora, como se ele fosse uma pessoa, uma vontade ou uma força?
Bem, não é exatamente assim. Devo esclarecer, sem sombra de qualquer dúvida, que não atribuo um significado místico ao Camino, não vejo nele nenhum ser mágico, nenhum demiurgo, nem Deus, nem um deus, pelo menos não no sentido e do modo como fazem pessoas como Paulo Coelho, que tentam (no caso dele, com sucesso) propagar um saudosismo medieval, povoado de templários de gabinete e sábios cavaleiros da internet, que ajudam a vender livros e mais uma extensa linha de produtos de consumo, que vão de souvenirs a pacotes turísticos, cursos espirituais e histórias de túneis mal localizadas. Não estou por aí, não. Quando personifico o Camino, quero mais me referir à vivência psicológica do enfrentamento de si mesmo, da busca dos próprios limites, de uma experiência de desafio da vontade, do uso da força e, de outro lado, do respeito à fraqueza, da economia do risco, da rendição à força avassaladora da natureza e, mais do que tudo, à sagração da beleza do mundo e da vida. Antes de religião, para mim, o Camino, é arte. E é isso que, como um desastrado aprendiz de feiticeiro, tento escrever, fotografar e viver, sem muito sucesso com os túneis e o frio na chuva, aparentemente.
Mas, nesse dia encarcerado, metido nas meias e no fleece que teimavam em não secar completamente, percebi que o Camino—e já o personifico de novo—me ensinou um novo modo de entender e gostar daqueles versos já tão repetidos, mas que eu não deixo de amar, do poeta espanhol Antonio Machado. Fala ele dos campos de Castilla, na época em que residiu na cidade de Soria, próxima da Logroño que visitamos nestas páginas, e, num certo momento do poema, assim se pronuncia:
Caminante, son tus huellas el camino y nada más; Caminante, no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se hace el camino, y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar. Caminante no hay camino sino estelas en la mar.
Proverbios y cantares (xxix), IN Campos de castilla
Eu sempre li o poema como uma exaltação da liberdade e da subjetividade da experiência humana, que faz com que os destinos não sejam predeterminados e o ser humano, dotado de liberdade e livre-arbítrio, possa fazer o seu caminho na vida, de forma única e individual. Assim, ensina o poeta, não há um caminho, mas tantos caminhos quantos indivíduos houver, como há estrelas no mar, incontáveis e nunca iguais.
É verdade. Ele diz isso. E, por este motivo, se você que me lê, um dia, for repetir o Caminho de Santiago Francês e resolver reproduzir, fielmente, as experiências que venho aqui relatando, concluirá que eu menti. E assim pensará, porque o Caminho que venho descrevendo não será encontrado, porque não existe, não pelo menos, para quem não sou eu. Porque há tantos caminhos quantos peregrinos houver e, o que se busca (ou se deve buscar), aqui, não pode ser, jamais, uma mesma coisa: pode-se estar atrás de um desafio atlético; ou buscando a iluminação espiritual; ainda, pode alguém estar só querendo mostrar aos amigos, ou ao companheiro, aquilo do que é capaz. Tantas coisas pode ser, tantas, que nem sei imaginar.
Mas, no Camino, pela primeira vez, hoje, minha atenção repousou sobre a frase que flutua no meio da estrofe, onde o poeta diz: “ao voltar os olhos para trás, se vê a trilha que nunca se voltará a pisar”. Neste momento, alguma voz, em mim, disse que o poeta não se referia somente ao fato óbvio de que o tempo não retorna. Há algo mais, que eu não via antes e, naquele momento, vislumbrei: que nunca se pisa a mesma trilha, não apenas porque o passado não volta, mas também porque o ser não volta e, ainda mais, porque o caminho não permanece. E, repare bem o leitor, o caminho não permanece, não só porque muda o clima, ou apenas porque você escolheu ir pelo vale, onde antes foi pela montanha, ou somente porque, dessa vez, foi à pé, ao invés de pedalar na bicicleta. Mesmo que nada disso mude (o que já é impossível), tudo será diferente, porque sua realidade de ser e estar será diferente. Num paralelo, para exemplificar, observe a mim e à Bia, que fizemos o mesmo trajeto, no mesmo clima e em mútua companhia. Na verdade, fizemos caminhos díspares e pessoais, com ritmos diferentes, pensamentos distintos e intenções diversas. E se o fizéssemos de novo, ainda que fosse possível repetirem-se escolhas, climas, humores e intenções, o caminho seria outro, porque outros seríamos nós, outro seria o “clima” do nosso ser, estar e sentir. E, em consequência, seriam outros rios, outras luzes do sol, outras flores, outra chuva, outras dificuldades, outros desafios, outras alegrias, outras dores, outros sorrisos que seriam vividos. Este o caráter paradoxal e misterioso do Camino.
Interregno e Anoitecer
No começo da tarde, perplexo, olhei pela janela e vi a estrada secando. A chuva, não sei em que momento, tinha cessado. Então, almoçamos o mesmo menu peregrino, cuidando para não repetir as escolhas, dentre as poucas opções disponíveis de entrada, principal e sobremesa, mas repetindo sempre, sem qualquer desconforto, o suave vinho da casa, que nunca nos enjoava.
Filosofias à parte, durante a tarde, muito pouco mudou. É certo que voltou a chuva, em algum momento. Que parou e, depois, voltou a chover. Que o tédio, da espera de prisioneiro, nem me deixou guardar na memória, de forma vívida, a sequência exata dessas nuances, que se confundiam, variavam, ondulavam e misturavam-se com o burburinho da tv, que eu ora assistia—quando percebia tratar-se de um boletim do tempo, para ver se alguma coisa mudava nas temperaturas de amanhã—e ora esquecia, absorto, mergulhado na preguiça e nos pensamentos difusos que um ócio forçado, como este, nos traz.
E, assim, a tarde demorada foi se esticando, até que, de súbito, chegou a hora do jantar. A mesma moça que vinha nos atendendo, desde ontem, quando chegamos, veio perguntar o que queríamos comer, ostentando um sorriso amarelo que, para mim, dizia “eu sei e lamento que só restem, no cardápio, mais uma única opção de entrada e de prato principal, diferentes do que já comeram”. Assim, para fugir da repetição, evitamos pedir os pratos que havíamos comido no almoço de hoje e no jantar da véspera. Escolhemos a única alternativa restante, não utilizada, de cada fase da refeição. Mas, ainda assim, repetimos o iogurte, o mesmo da sobremesa do jantar de ontem, não porque fosse tão bom (era um simples iogurte industrial), mas para variar, pelo menos uma coisa, no nosso jeito de pedir. Rimos, pela primeira vez neste dia.
E jantamos. E jogamos conversa fora. E claro que evitamos falar dos prognósticos do clima de amanhã, ou do frio que se previa, ou deixava-se de prever. Não mencioná-los era um jeito de empurrar com a barriga aquele nada, aquele sentimento de ausência, até a hora de dormir, que, afinal, chegou.
Resumo do dia 16 – Caminho de Santiago
Percurso: descanso forçado, ilhados pelo frio e pela chuva, no Alto do Poio, vilarejo de Padornelo
Distância e ganho de elevação: 0km com 0m de ganho de elevação
A Casa Rural Os Arroxos, onde passamos esta última noite, se compõe de dois edifícios, um defronte ao outro, nos dois lados da única rua do Trabadelo, que corre em paralelo ao curso do Río Valcarce, que já encontramos em outras ocasiões. Do lado da montanha, tem uma casa ao pé da rua, com um andar de pedra e o segundo em alvenaria, sem muita graça, quase feia e, encostada nela, uma garagem coberta e fechada, onde deixamos estacionadas as bicicletas. No térreo, fica o bar, que também funciona como recepção, comedor e sala de estar, como é comum acontecer nos albergues dos pequenos vilarejos do Caminho. No mesmo edifício, no andar de cima, ficam os quartos e banheiros compartilhados, com camas e beliches. Do outro lado da rua, de frente para o bar e de costas para o vale do Valcarce, há um sobrado mais simpático, recuado da calçada e sem qualquer identificação comercial, onde o albergue oferece quartos com banheiros privados, dentre os quais aquele que ocupamos. Há, também, um setor isolado por uma porta de vidro, pela qual se podia ver uma sala de estar e a partir de onde, supostamente, se localizam os cômodos privados dos donos do estabelecimento. Como o frio e a chuva não me deixaram ânimo para fotografar o local, busco ajuda no Google: Os Arroxos.
Ontem, por volta das seis da tarde, quando chegamos a Os Arroxos, encharcados e tremendo de frio, entramos primeiro no bar e recebemos no rosto o agradável afago da atmosfera cálida e envolvente daquele ambiente, que era aquecido por uma estufa onde crepitavam, atrás de uma portinhola de esquadria metálica com vidro, algumas toras de lenha. Depois de nos aquecermos um pouco, tomarmos uma xícara de café com leite e enquanto fazíamos os procedimentos de registro de hospedagem, a dona d’OArroxos, uma senhora espanhola, na faixa dos sessenta anos de idade, mostrava-se muito espantada com o fato de que números dos nossos passaportes eram sequenciais. Quando expliquei que nossos passaportes anteriores tinham expirado na mesma época e que os novos receberam números sequenciais porque fomos atendidos juntos, no processo de renovação, ela disse que, na Espanha, os passaportes também expiram e perdem validade, mas ainda assim mantém, nas renovações, um mesmo e único número, que é idêntico ao da cédula de identidade de seu portador. Esta troca de informações, além de nos ilustrar sobre as idossincrasias das respectivas burocracias pátrias, também serviu para nos abrir um canal de comunicação um pouco mais intimista, que foi útil, no dia seguinte, para saciar minha curiosidade e, na sequência, me deixar em pequenos maus lençóis.
Trabadelo na manhã do 15º dia: 7ºC com chuva finaLer mais
Saindo do hotel Alda, no centro de Ponferrada, só a brisa fria, embora moderada pelas aparições de um sol tímido, entre nuvens poeirentas, poderia indicar que o clima seria, mais uma vez, o grande protagonista do dia. Mas a temperatura amena e a lembrança viva de vários dias luminosos, passados nesta linda província de Castilla y León, nos ajudavam a manter o tipo de ilusão que a sabedoria popular chama de “olhos de quem não quer ver.” Pois foi com esses olhos que partimos para a primeira tarefa do dia, que era a de trocar dólares por euros, coisa que, já aprenderamos em Logroño, deve-se fazer numa agência do Santander. (Essa é uma dica importante para quem vai trilhar o Caminho: nos vilarejos e albergues, só circula o dinheiro em espécie; cartões de crédito ou débito não são, via de regra, aceitos e a maioria dos bancos só faz câmbio para seus próprios clientes.)
Então, fomos a uma agência do Santander, que ficava próxima ao hotel onde nos hospedamos, fizemos o câmbio e, às 10:30h da manhã, com confortáveis 18ºC de temperatura e a carteira devidamente provida de euros, saímos em direção a Vega de Valcarce, supostamente nosso destino do dia, mas que, na realidade, só alcançaríamos amanhã.
Arredores de Ponferrada, com o clima cinzento que prenunciava mau tempo adianteLer mais
Como no dia anterior, iniciamos a jornada com um lindo céu azul, temperatura em elevação, mas amenizada pela altitude, numa paisagem maravilhosamente florida. O percurso se dividiu quase exatamente pela metade, entre uma subida gradativa, que nos levou à altitude em torno de 1.500m, no topo do Monte Irago, onde se encontra a famosa Cruz de Ferro, e a bem-vinda descida, que nos entregou, nem sempre suavemente, a Molina Seca e, no final, a Ponferrada, onde pernoitamos.
Flores do campo, na região de Santa Catalina de Somoza
León, Reino de Castilla y León
Voltamos ao Camino, com 6°C de temperatura, tempo claro, corações e mentes renovados pelo reconfortante dia anterior, de descanso e aventuras, nesta já querida cidade de León. À saída, paramos para tomar o café da manhã no restaurante do Hostal Bucallino, que fica numa localização privilegiada, no canto de uma praça, a poucas quadras da Calle Ancha e da Plaza onde se assenta a grande catedral.
Praça onde se localiza o restaurante Bucallino (à direita da cena na foto)Depois de um café expresso com tostadas con mantequilla y mermelada de melocotón, cruzamos, pela última vez, as ruelas do centro histórico, seguindo por entre belos edifícios antigos, nas avenidas que acompanham o traçado do rio Bernesga, em direção à saída da cidade, para os lados que nos levariam, ao final desse memorável dia, a Astorga.
Acima, a igreja e o Parador Nacional de San Marcos, nas proximidades do rio Bernesga
Numa sequência de conversões, diligentemente conduzidas, de modo a cumprir em segurança nossa rota ciclística, para além da zona urbana central, até parece que os leonenses fazem uma certa confusão entre mão e contramão:
Mas, ainda assim, logramos sair de León e seguimos pedalando por lindos campos, num dia claro e com a temperatura—que chegaria aos 29°C ao final da tarde—em franca elevação. Passamos, pedalando com determinação, por vilazinhas com nomes estapafúrdios—Trobajo Del Camino, Valverde de la Virgen, Oncina de la Valdoncina,Santovenia de la Valdoncina, Chozas de Abajo e Villar de Mazarife.
Em Trobajodel Camino, pegamos a primeira série de subidas fortes do dia (logo ao sair de León) e reencontramos as bodegas, estas agora já cercadas pela crescente urbanização.
Bodega contornada pelas ruas, devido ao crescimento da área urbana
Na altura de Valverdede la Virgen, percorremos a segunda série de subidas, dessa vez alternada com descidas, em dois pares sucessivos, em pista asfaltada, mas com pouco movimento de veículos.
Estrada na região de Valverde de la Virgen
Passamos por dentro da vila de Oncina de la Valdoncina, onde encontramos mais das já familiares casas de adobe. O violão pendurado me diz tratar-se de um albergue voltado ao público jovem, mas não fui conferir.
Em Santovenia de la Valdoncina, o Caminho não entra na área urbana. Mas percorre sua bela área rural.
Já a pequena Chozas de Abajo, percorremos por inteiro, cruzando, inclusive, a área urbana e seguindo, por suaves ondulações, as curvas do terreno, até chegar ao vilarejo seguinte.
Campos verdejantes, próximos a Chozas de Abajo
Área urbana de Chozas de Abajo, com belos jardins
Planície em suave declive, após a saída de Chozas de Abajo
Seguimos, portanto, por esses declives delicados, até chegar a Villar de Mazarife e apreciar sua curiosa igreja, que faz um misto de templo, casa e silo, além de ter a torre povoada de cegonhas. Veja só:
Bem em frente e ao pé dessa torre, há um café, onde paramos para usar os aseos e tomar coca-colas com gelo e limão. Depois, ao sair de Villar de Mazarife, nos vimos numa longa estrada asfaltada—macia, reta e plana—que, de tão longa, nos tomaria todo o restante da manhã para percorrermos, até chegarmos a Bustillo del Páramo.
Pedal plano, levemente descendente, na verdade; retilíneo e em piso regular. Significa tempo para meditar e perceber o que vai pela alma. Como num filme, nos passam pela memória o frio e o esforço intensos, vividos nos Pirineus; o penoso calvário dos três seguidos dias de ventanias; a alegria de conhecer a beleza solar do Canal de Castilla; a alegria, a arte e o descanso, em León; a dor nos pés e os dedos enregelados; e tanto mais. Doze dias: tanto a recordar. Doze dias e já começávamos a desconfiar do que esta experiência do Caminho, de fato, tratava.
Final da longa reta que nos levou a Bustillo del Páramo, onde acaba o asfalto e vem a primeira curva, em muitos quilômetros
Ponto onde termina a grande reta e, tendo mudado o piso para terra, o Caminho dobra à esquerda
Depois, ainda passamos pela pequena Villavante e pelos campos e residências rurais de Santa Marina del Rey, onde também encontramos uma ferrovia, um pouco antes de chegar ao rio Órbigos.
O ponto em que encontramos o rio Órbigos é aquele onde se encontra uma das mais famosas pontes medievais da Espanha, a Puente de Órbigos.
Ela se estende sobre o leito do rio e vai além, unindo a vila que lhe pega emprestado o nome, Puente de Órbigos, ao vilarejo de Hospital de Órbigos, na extremidade mais distante da imagem acima.
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Igreja em Puente de Orbigos
Río Órbigos, visto da ponte
Ciclistas no início da ponte
Vista de Hospital de Órbigos, com a parte final da ponte em primeiro plano
Centro de interesse nessa parte do Caminho, a Puente de Órbigos é uma linda e extensa ponte medieval, também conhecida como Puente de Paso Honroso, em referência a uma passagem épica, citada, inclusive, por Cervantes, no Don Quijote. A história teria se passado no local, no ano de 1434, quando um famoso cavaleiro organizou um dos mais famosos torneios da cavalaria espanhola. Se quiser saber mais sobre esta história, veja em A Lenda do Passo Honroso.
Um pouco adiante, chegamos a Villares de Órbigos.
Bia cruzando a trilha que une Hospital de Órbigos a Villares de Órbigos
Villares de Órbigos
Agricultores trabalham em campo próximo ao vilarejo
Quando entramos em Villares de Órbigos, já eram em torno de 13 horas. Queríamos almoçar mas, não sabemos por qual motivo, se por respeito à tradição da siesta ou porque o dia de folga da cidade fosse às terças-feiras, tudo se encontrava fechado. Demos várias voltas, até nos apercebermos de que era em vão, e resolvemos, a contragosto, seguir até o próximo vilarejo. Apesar da frustração e da fome, tivemos que reconhecer que o local tem seus encantos, na sua maioria de natureza rural.
Maquinário e feno estocado, na saída do vilarejo
Criação, numa das fazendas
Feno estocado
Árvore solitária
Estrada que lembra algumas partes de Minas Gerais (vale para as duas fotos acima—e a abaixo, também)
Flores à beira da estrada
Descida técnica em terra e cascalho solto (muuuito legal!)
Quando chegamos a Santiáñez de Valdeiglesias, não foi difícil de achar onde comer. Logo vimos um albergue exibindo, ao lado da entrada, o tradicional cavalete-lousa, com as opções do menu peregrino que, usualmente, para meu desapontamento, muito pouco variavam.
Desta vez, porém, novidades. Havia um primeiro prato de salada com bacon e umas tais de gulas, que nos foram descritas, genericamente, pelo atencioso proprietário, como pescado. Chegado o prato, nos servimos e começamos a comer. E era uma delicia!
Salada com gulas
Já pela metade da degustação do prato, comentei com Bia:
—Deliciosa a salada! Só não entendi como fazem para cortar tão fininho o peixe.
—Bem, acho que não é cortado, porque não seria possível cortar assim em “cabelinhos”, respondeu Bia, querendo ressaltar que se tratavam de fios de seção circular, que não poderiam resultar de simples fatiamento. Ou seja, ainda que sendo pescado, aquilo não era peixe.
Intrigados, consultamos o Google e descobrimos que estávamos comendo “alevinos de enguia”! —Huuuuum! Delícia!
E foi mesmo. Concluímos que, às vezes, não saber é uma benção.
Depois do café e de um breve descanso, com aquela satisfação, que só uma boa refeição, coroada de uma descoberta culinária feliz pode proporcionar, retornamos à estrada, para enfrentar nosso terceiro trecho de subidas do dia, íngreme, mas uma linda porção do Camino!
Pois subimos o que havia a subir e, do outro lado, descemos o que nos foi dado descer. Foi a maior elevação do dia, seguida de uma gostosa descida, para alcançar San Justo de la Vega.
Bosque de reflorestamento
Aproximação, já no final da descida, de San Justo de la Vega
Uma vez alcançado o vilarejo de San Justo de laVega, seguimos para atravessar o Río Tuerto e, logo, chegamos a Astorga.
Ponte sobre o Río Tuerto
Já na área urbana da Astorga moderna, mas ainda antes de chegar ao perímetro histórico, cruzamos uma linda pontezinha medieval e começamos a subir, obtendo uma bela vista do centro histórico.
Pequena ponte medieval, às portas de Astorga
Vista do centro histórico de Astorga, acima e ao longe
Depois de uma penosa subida urbana, alcançamos o topo de uma colina que abriga uma igreja bastante antiga e um mosteiro adjacente.
Na frente do prédio do mosteiro, havia uma estrutura em metal e vidro, que nos chamou atenção e cuja extremidade se vê no canto inferior esquerdo da imagem acima. Paramos nossas bicicletas e fomos examinar de perto. Surpresa: tratava-se de uma cobertura baixa, que protegia os remanescentes de uma residência senhorial, da Astorga romana, que foi habitada no período que vai do séc. I ao IV dC. Uma casa com vários cômodos, incluindo termas de uso privado e parte de um piso, em mosaicos, bastante preservado, com desenhos dedicados ao deus Dionísio.
Parte das ruínas de uma casa romana
Setor que abrigava as termas, com seções de águas quentes, mornas e frias.
Detalhe da porção preservado do piso em mosaicos
Depois seguimos a uma pracinha, onde havia o Museu Romano, que não visitamos, e mais uma igreja.
Astorga tem três praças que formam o eixo de interesse histórico e turístico da cidade. A Plaza Eduardo de Castro, que abriga a catedral, numa extremidade, e o Palácio Episcopal, numa lateral. A Plaza Santoclides, que tem belos jardins e o monumento à resistência da cidade contra Napoleão. E a Plaza de España, fechando ao sul o conjunto, com o edifício da sede do Ajuntamiento e simpáticos cafés.
Como chegamos pelo sul da cidade, chegamos primeiro à Plaza de España, onde paramos para tomar uma coca-cola.
Vista da Plaza de España
Edifício-sede do Ajuntamiento
Depois passamos pela Plaza Santoclides, que é muito bonita e ajardinada.
Monumento à resistência contra Napoleão
E, por fim, chegamos à Plaza Eduardo de Castro, onde sentamos num banco e selecionamos uma pousada para o descanso, que foi a Repouso de Wendy, de uma senhora engraçada, dona de uma loja de acabamentos para construção. Bem perto de nós, estava a catedral e, ao lado, o Palácio Episcopal.
Frente da Catedral de Santa María de Astorga
Detalhe de uma das vias de acesso à catedral
Uma das laterais da catedral
Parte posterior da catedral, que é voltada para a Plaza de España
Comoaindatínhamos tempo, resolvemos visitar o Palácio Episcopal, um dos principais projetos de Gaudí.
Avisita começou pelos jardins, que abrigam os anjos que, originalmente, deveriam ocupar as cumeeiras do palácio.
Depoispassamos ao interior do edifício, que além da originalidade da arquitetura, impressiona pelas formas inusitadas (como a da monumental entrada, que já foi mostrada acima), pela inovação na releitura de padrões antigos (como nos vitrais e na utilização das referências ao gótico).
Em especial, o palácio evoca a tradição da arquitetura medieval ibérica, pelautilização de seus elementosmais característicos, reinterpretadas: a cúpula, revisitada com ornamentos que remetem à influência moura, e o arcobotante, trazido para o interior do edifício e, assim, exposto.
Depois que nos instalamos na pousada, tomamos um bom banho e descansamos um pouco, era tempo de jantar. Eu estava em tratamento com o cicladol e ainda sentia bastante o tornozelo. Então, selecionamos um restaurante bem próximo à pousado, para que não fosse preciso caminhar muito. O escolhido foi o restaurante Serrano, relativamente caro, mas com ótimas avaliações. Valeu à pena. Experimentamos a Cecina, um prato típico local, que consiste numa espécie de presunto bovino cru. Realmente, uma delicia!
Depois, cama.
Resumo do dia 12 – Caminho de Santiago
Percurso: de León a Astorga
Distância e ganho de elevação: 56,4km com 526,6m de ganho de elevação
O 11° dia no Caminho foi um dia de descanso na bela cidade de León. Tendo como base nosso pequeno e funcional estúdio, localizado na Calle Del Teatro, no coração da cidade velha, fizemos do descanso também um dia útil.
Após um bom café da manhã, no Café Rúa 11, que fica ao lado, voltamos ao estúdio para lavar as roupas de pedalar. Montamos um varal no meio da sala e ficamos imaginando, enquanto pendurávamos bermudas, meias e bandanas lavadas, a cara do dono do estúdio, se visse isso. —Oh! My goodness!
Assim cumpridas as obrigações domésticas, saímos novamente e subimos pela Calle Rúa (risos! Mas é assim que se chama), viramos à direita na Calle Ancha e seguimos em direção à catedral de Santa Maria de León, que é um dos mais significativos exemplos do estilo gótico, na Espanha.
Portal da entrada principal. Catedral de Santa Maria de León
Saímos de Moratinos às 9:12h, com um lindo céu azul e um vento suave a favor. Frio? —Sim, como em todos os dias, por aqui, mas nem se notava, porque a delícia da manhã fulgurante de primavera impedia reparar.
Vista da desembocadura do Arroyo Del Parazuelo no rio Cea, em Sahagún
Depois de três dias seguidos de ventania e chuva, foi uma benção iniciar um pedal com frio de 9°C, mas sem ventos. Fora que a região de Itero de La Vega e do Canal de Castilla é maravilhosa.
Decididamente, Santiago não está querendo facilitar as coisas para esta dupla. Ou então pretende valorizar o passe destes Dois no Caminho. O oitavo dia começou com 13°C e o chuvisco gelado iniciou assim que pusemos os pés (ou as rodas) na rua. Depois a chuva parou, mas foi substituída por mais uma sessão interminável de ventos frontais, com rajadas.
Três dias seguidos de vento forte e contrário ninguém merece! Mas foi o que tivemos. E nós ainda ousamos subir esta “pequena” montanha, após a cidade de Castrojeriz, para respeitar o trajeto tradicional do Camino:
A noite bem dormida no Hotel San Anton Abad valeu a pena. Depois de um bom café da manhã, com cereais, iogurte, café, suco e torradas com manteiga e geléia, saímos para mais um dia duro de pedal. Sob frio intenso, mas sem chuva, com o céu ainda carregado de nuvens ameaçadoras, iniciamos a subida íngreme, de 5km, que avança pela floresta de carvalhos, subindo os Montes de Oca, em direção à pequena San Juan de Ortega, 8km adiante e, com mais 4km, Agés.
Havia, ainda, bastante vento contrário, mas menos que na véspera. E sempre esperávamos que arrefecesse, ou mudasse de direção. Mas foi em vão.
Campos verdejantes no início da subida dos Montes de Oca e, atrás, os telhados do Hotel San Anton Abad
O sexto dia no Caminho teve muito, mas muito, vento. E foi vento quase de frente, ininterrupto, com 54km/h de média e rajadas de até 90km/h, registradas pelo weather-fourteen para as 14h. Nestas condições, descidas de até 4° de inclinação funcionavam como subidas, exigindo marchas de subida para avançarmos. Não bastasse isso, foram 662m de ganho de elevação, em apenas 35km. Praticamente só subidas, no percurso inteiro. Pelo menos, não chovia, pelo que demos graças à galinha sagrada de la calzada.
Este que vos escreve, entre Espinosa Del Camino e Villafranca (foto da Bia)
Nosso 5° dia no Caminho começou com providências de logística da viagem e terminou com uma galinha sagrada. E no meio disso, ainda teve música country e flores lindas.
Músico toca e canta para os peregrinos à beira do Caminho, em Alesón
O País Basco é uma pequena jóia, da qual o percurso de Villatuerta à capital, Logroño, é um diamante especial. São 58km de contrastes e paisagens maravilhosas, com subidas desesperadoras, perfazendo um ganho total de elevação de 1.003m. Em compensação, tem single-tracks de tirar o fôlego, descidas desafiadoras e um sabor inconfundível do Camino, como se pode ver nesta imagem, captada da região de Igúzquiza, que fica entre Estella e Villamayor de Monjardin:
Um dia de sol maravilhoso, muito frio pela manhã, mas com céu limpo. Fizemos um pedal pesado, com quase 1.100m de ganho de elevação em 60km, incluindo a dura subida para o Alto dos Perdones, mas, por mais que cansados, chegamos a Villatuerta muito satisfeitos, com o coração e os olhos cheios de cores deste lindo País Basco espanhol.
Vinhas com o burgo de Cirauqui, Navarra, ao fundo. País Basco espanhol
Saímos da Posada Nueva às 9:25h com uma temperatura de 4°C e céu nublado, mas sem chuva! Como suportáramos chuva e muito frio na véspera, resolvemos fazer somente o percurso até Pamplona, a cerca de 32km de distância.
Posada Nueva, na vila de Bizkarreta
Tendo verificado que nosso trajeto atravessaria o vale com o curioso nome de Erro, paramos para fazer fotos com nossos companheiros de pousada ao lado deste mapa que havia num canto da praça (obs: o mascarado sou eu):
Hoje iniciamos o Caminho? —Depende. Se o clima permitir.
Com frio e previsão de chuvas para o dia todo e temperatura na faixa de 4ºC para a altitude de Roncesvalles, vamos avaliar as chances, após o café da manhã. Se for melhor, aguardamos até amanhã por aqui, embora a previsão também indique chuvas para o sábado.
Este ė um diário de viagem, que faço com a esposa Bia Barboza, pedalando pelo Caminho de Santiago Francês. Serão cerca de 870km de percurso, entre Saint-Jean-Pied-De-Port e Finisterre, passando claro por Santiago de Compostela, com início amanhã, dia 3 de maio de 2019.
Nossa aventura vai se dividir em 18 dias de pedal, com 2 dias de descansos em pontos à nossa escolha. De início, vamos daqui de Saint-Jean até Viscarret, a 38km de distância e 1.500m de elevação à frente. Como a meteorologista prevê chuva e frio para amanhã, nos prevenimos com agasalhos e despachamos a maior parte da tralha para nosso destino, de modo a subirmos com o mínimo de carga.