Alto do Poio, Galiza
Hoje não tirei fotos, o que, por si só, já é um retrato do dia.
Ao levantar-me, verifiquei que nossos pitorescos varais não tinham secado totalmente as roupas. O Alto do Poio, onde estávamos, fica ao lado do vilarejo do Padornelo, que não se deve confundir com a cidade do mesmo nome, localizada bem mais ao sul, próximo da fronteira com Portugal. Com seus 1.335m de altitude, o Poio corresponde ao ponto mais alto desta parte do Camino que cruza o maciço do Cebreiro, cujo passo está um pouco abaixo, a 1.311m. Toda esta região apresenta um clima típico de montanha, geralmente frio e sujeito a bruscas alterações, mas, durante esta época do ano, não é comum enfrentarem-se ondas prolongadas de mau tempo, com temperaturas tão baixas como as observadas nesta primavera. A despeito disto, para o momento, meu aplicativo de clima indicava uma temperatura de 1ºC, com chuva fina, por toda a região, como pudemos verificar pessoalmente, pela janela do bar, depois de descermos para tomar nosso café da manhã, que consistiu, como era habitual, de duas torradas com manteiga e geléia e café com leite, preparado com café expresso e sem açúcar.

Prisioneiros do Poio
Nem chegamos à metade do desjejum, quando Bia, desanimada com o mau tempo, que hoje se apresentava ainda pior do que ontem, quis, de novo, desistir. Propôs que eu prosseguisse sozinho, enquanto ela pegaria um táxi, já não para Triacastela, mais próxima, mas muito pequena, mas para Sarria, uma cidade de médio porte, que fica a cerca de 40km de distância, dentro do trajeto do Camino e de onde ela poderia pegar algum transporte em direção a Santiago de Compostela e, dali, para Portugal.
Eu, como da última vez, discordei veementemente do seu plano. Mais que depressa, estudei as previsões dos aplicativos de clima que tinha no iPad, e vi que permanecia piorando o prognóstico de chuva, com possibilidade de pequenas ocorrências de neve, além de ventos fortes, para todo o dia, mas que a previsão do tempo para o dia seguinte se mostrava bem mais animadora: um pouco mais frio do que hoje, mas com uma brisa moderada e, o que era mais importante, céu claro e nada de chuva. Propus, então, ficarmos descansando por este dia, aqui mesmo no Alto do Poio, onde estávamos, e seguir pedalando amanhã, com tempo e roupas secos.
Não era tarefa fácil convencê-la. Pudera, ficar naquele fim de mundo, além da tarde e noite de ontem, por mais um dia e uma noite inteiros, sem nada para fazer além de olhar a chuva cair lá fora e torcer por uma incerta estiagem no dia de amanhã, não era nada atraente. Mas, no íntimo, alguma coisa me dizia que a nossa perseverança seria recompensada. Arrisquei, então. Lancei, como argumento, tudo aquilo que eu não tinha, na realidade, meios de assegurar. E porque eu não tinha como saber se as previsões dos aplicativos se confirmariam, eu nada podia garantir. Mas, ainda assim, afirmei, com os ares da segurança que eu não possuía, que o trajeto até Triacastela devia ser muito lindo, porque nos daria uma incrível visão das paisagens da montanha, além do que, tratando-se de uma grande descida, nos levaria a um fundo de vale onde, como é normal, a temperatura seria mais alta, certamente… Certamente?
Num certo momento da nossa discussão de alternativas e possibilidades, fomos surpreendidos por um ruído de ventania inusual, que nos fez, os dois ao mesmo tempo, voltar os olhares para o lado de fora da janela do bar. Era uma rápida rajada de vento e neve, que esbranquiçou o capô de um carro que estava estacionado em frente e criou uma fina cobertura glaciar sobre a tampa de um pequeno contêiner de lixo, uma espécie de cubo de cerca de um metro cúbico, feito de plástico amarelo, que estava encostado num canto, do outro lado da estrada. Neve de primavera, como tal, derreteu logo, como se sumisse no nada, no meio da chuvinha fina e chata, que não parava.
O fato é que a previsão de tempo para amanhã, nos aplicativos que consultei, dizia de uma mínima de -4ºC e a máxima de 6ºC, para o Alto do Poio, que subia apenas um grau, para 7ºC, na localidade de Triacastela. Isto sem contar que esta máxima só aconteceria lá para o final da tarde, por volta das 17 horas, quando já teríamos chegado, se estivéssemos aqui tratando de um pedal comum e normal, para além de Portomarín, muitos quilômetros adiante.
Eu nem sei bem como consegui isso, mas, no final, minha proposta prevaleceu. Talvez eu tenha sido ajudado pela inércia, ou pela rajada de neve que presenciamos, ou, ainda, pela natural aversão à desagradável alternativa de tomar-se qualquer outra atitude que resultasse em ir para fora, em sair naquele tempo medonho. O fato é que Bia aquiesceu e, por consequência, ficamos por ali. Então, sem perder tempo, eu confirmei a disponibilidade do quarto para mais uma diária, com o dono do albergue, e ali permanecemos. No limbo, ficamos. Ora no quarto, sem janelas, ora naquele bar meio sujo, com suas cadeiras desconfortáveis e o barulho da tv, sempre no tédio e na incerteza. Estarmos retidos no Poio foi como estar preso sem condenação, ou como ser condenado por um crime que não se cometeu. Foi como ficar num lugar não escolhido, imposto por uma força incontestável, pelo destino. Dois, não mais no Camino, mas ilhados, pelo frio, pela chuva e pela neve, no Hostal Santa Maria do Poio.

Dia modorrento, dedicado a esperar, matar o tempo e mais esperar, transcorreu lentamente, por uma boa parte dele sem qualquer sinal de mudança na chuva e no frio que, da janela do bar, pudesse nos indicar a passagem do tempo. Excluindo-se a chegada de um casal de coreanos, que pediu ajuda para chamar um táxi, aguardou-o e se foi, e mais dois ou três resilientes peregrinos, que espiamos, pela janela do bar, chegarem para ficar ou passarem chapinhando pela estrada gelada, com suas capas impermeáveis e coloridas, vindos provavelmente de Liñares ou do Cebreiro, nada mais aconteceu.
O Túnel Pardonelo
Numa certa hora, Bia navegava na internet, quando encontrou uma curiosidade sobre o monte Padornelo, que supúnhamos corresponder ao pequeno povoado de Padornelo, que fica bem próximo de onde estávamos, um pouco deslocado do traçado da estrada que nos havia trazido de Liñares. Ela comentou a descoberta comigo e, juntos, conversamos e nos emocionamos com um relato surpreendente. Tratava-se da história da construção de um longo túnel ferroviário, de seis quilômetros de extensão que, de tão perfeitamente linear, suas duas entradas eram visíveis de seu ponto central, mais elevado e no coração da montanha, onde um poço vertical, utilizado como via de acesso de materiais e de retirada de entulhos, em sua construção, servira depois como canal de circulação de ar e condutor dos volumosos afloramentos de água, que brotavam das rochas da montanha para dentro túnel. Inaugurado no ano de 1967, era descrito como um grande feito de engenharia, mas que custou um alto preço, tanto em dinheiro como em esforço e sofrimento humanos. O “túnel 19” (ou 12, em algumas versões) contava a triste história de uma construção tecnicamente ousada para sua época, mas que se prolongou por 25 anos, causando a morte e o adoecimento de dezenas de operários. Contava também a história de uma vila, chamada Campamento Santa Bárbara, construída a partir do zero, num local próximo a uma das entradas do túnel, para abrigar os trabalhadores, e que fora abandonada, a partir do término das obras, tornando-se, então, uma pequena vila fantasma. Como não poderia deixar de ser, nossos pensamentos se voltaram para o drama daqueles pobres operários, sofrendo dos efeitos do pó das rochas, no fundo daquele poço, vivendo e trabalhando entre o topo e as entranhas da montanha, sujeitos ao mesmo frio e à mesma umidade que ora testemunhávamos. Depois, já de volta ao Brasil, procurando uma evidência do túnel, não consegui localizar nos mapas uma ferrovia que passasse próximo à região do Cebreiro e do Alto do Poio. Foi depois de muito procurar no Google Maps que descobri: o túnel de Padornelo se localiza nas proximidades da cidade de Padornelo, homônima, mas distante, por muitos quilômetros, bem ao sul do pequeno vilarejo de Padornelo, onde nosso exílio de um longo dia se passara.
As Estrelas do Mar
Voltemos, então, ao cárcere do Poio. Numa boa parte daquela tarde, aproveitei para revisar as notas de viagem, que me permitiam, com atrasos cada vez maiores, escrever estas recordações diárias, às vezes um pouco penosas, enquanto Bia descansava no nosso quarto-varal. Mas, como o wifi do albergue era tão precário quanto as demais instalações oferecidas e não havia sinal de celular, nisso também não se podia adiantar muito, porque o WordPress, que uso para escrever, precisa de conexão. Foi o suficiente, porém, para me saltar à vista como, nas minhas notas de viagem, se repetia, sem parar, uma mesma prosopopéia. Quem diria?—Vi, nas notas de ontem e nas de muitos outros dias também, uma admiração e, às vezes, revolta, frente uma coisa inumana! Um ente!—Logo eu, que sou um tanto descrente, me referindo ao Camino, a toda hora, como se ele fosse uma pessoa, uma vontade ou uma força?
Bem, não é exatamente assim. Devo esclarecer, sem sombra de qualquer dúvida, que não atribuo um significado místico ao Camino, não vejo nele nenhum ser mágico, nenhum demiurgo, nem Deus, nem um deus, pelo menos não no sentido e do modo como fazem pessoas como Paulo Coelho, que tentam (no caso dele, com sucesso) propagar um saudosismo medieval, povoado de templários de gabinete e sábios cavaleiros da internet, que ajudam a vender livros e mais uma extensa linha de produtos de consumo, que vão de souvenirs a pacotes turísticos, cursos espirituais e histórias de túneis mal localizadas. Não estou por aí, não. Quando personifico o Camino, quero mais me referir à vivência psicológica do enfrentamento de si mesmo, da busca dos próprios limites, de uma experiência de desafio da vontade, do uso da força e, de outro lado, do respeito à fraqueza, da economia do risco, da rendição à força avassaladora da natureza e, mais do que tudo, à sagração da beleza do mundo e da vida. Antes de religião, para mim, o Camino, é arte. E é isso que, como um desastrado aprendiz de feiticeiro, tento escrever, fotografar e viver, sem muito sucesso com os túneis e o frio na chuva, aparentemente.
Mas, nesse dia encarcerado, metido nas meias e no fleece que teimavam em não secar completamente, percebi que o Camino—e já o personifico de novo—me ensinou um novo modo de entender e gostar daqueles versos já tão repetidos, mas que eu não deixo de amar, do poeta espanhol Antonio Machado. Fala ele dos campos de Castilla, na época em que residiu na cidade de Soria, próxima da Logroño que visitamos nestas páginas, e, num certo momento do poema, assim se pronuncia:
Caminante, son tus huellas
Proverbios y cantares (xxix), IN Campos de castilla
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.
Eu sempre li o poema como uma exaltação da liberdade e da subjetividade da experiência humana, que faz com que os destinos não sejam predeterminados e o ser humano, dotado de liberdade e livre-arbítrio, possa fazer o seu caminho na vida, de forma única e individual. Assim, ensina o poeta, não há um caminho, mas tantos caminhos quantos indivíduos houver, como há estrelas no mar, incontáveis e nunca iguais.
É verdade. Ele diz isso. E, por este motivo, se você que me lê, um dia, for repetir o Caminho de Santiago Francês e resolver reproduzir, fielmente, as experiências que venho aqui relatando, concluirá que eu menti. E assim pensará, porque o Caminho que venho descrevendo não será encontrado, porque não existe, não pelo menos, para quem não sou eu. Porque há tantos caminhos quantos peregrinos houver e, o que se busca (ou se deve buscar), aqui, não pode ser, jamais, uma mesma coisa: pode-se estar atrás de um desafio atlético; ou buscando a iluminação espiritual; ainda, pode alguém estar só querendo mostrar aos amigos, ou ao companheiro, aquilo do que é capaz. Tantas coisas pode ser, tantas, que nem sei imaginar.
Mas, no Camino, pela primeira vez, hoje, minha atenção repousou sobre a frase que flutua no meio da estrofe, onde o poeta diz: “ao voltar os olhos para trás, se vê a trilha que nunca se voltará a pisar”. Neste momento, alguma voz, em mim, disse que o poeta não se referia somente ao fato óbvio de que o tempo não retorna. Há algo mais, que eu não via antes e, naquele momento, vislumbrei: que nunca se pisa a mesma trilha, não apenas porque o passado não volta, mas também porque o ser não volta e, ainda mais, porque o caminho não permanece. E, repare bem o leitor, o caminho não permanece, não só porque muda o clima, ou apenas porque você escolheu ir pelo vale, onde antes foi pela montanha, ou somente porque, dessa vez, foi à pé, ao invés de pedalar na bicicleta. Mesmo que nada disso mude (o que já é impossível), tudo será diferente, porque sua realidade de ser e estar será diferente. Num paralelo, para exemplificar, observe a mim e à Bia, que fizemos o mesmo trajeto, no mesmo clima e em mútua companhia. Na verdade, fizemos caminhos díspares e pessoais, com ritmos diferentes, pensamentos distintos e intenções diversas. E se o fizéssemos de novo, ainda que fosse possível repetirem-se escolhas, climas, humores e intenções, o caminho seria outro, porque outros seríamos nós, outro seria o “clima” do nosso ser, estar e sentir. E, em consequência, seriam outros rios, outras luzes do sol, outras flores, outra chuva, outras dificuldades, outros desafios, outras alegrias, outras dores, outros sorrisos que seriam vividos. Este o caráter paradoxal e misterioso do Camino.
Interregno e Anoitecer
No começo da tarde, perplexo, olhei pela janela e vi a estrada secando. A chuva, não sei em que momento, tinha cessado. Então, almoçamos o mesmo menu peregrino, cuidando para não repetir as escolhas, dentre as poucas opções disponíveis de entrada, principal e sobremesa, mas repetindo sempre, sem qualquer desconforto, o suave vinho da casa, que nunca nos enjoava.
Filosofias à parte, durante a tarde, muito pouco mudou. É certo que voltou a chuva, em algum momento. Que parou e, depois, voltou a chover. Que o tédio, da espera de prisioneiro, nem me deixou guardar na memória, de forma vívida, a sequência exata dessas nuances, que se confundiam, variavam, ondulavam e misturavam-se com o burburinho da tv, que eu ora assistia—quando percebia tratar-se de um boletim do tempo, para ver se alguma coisa mudava nas temperaturas de amanhã—e ora esquecia, absorto, mergulhado na preguiça e nos pensamentos difusos que um ócio forçado, como este, nos traz.
E, assim, a tarde demorada foi se esticando, até que, de súbito, chegou a hora do jantar. A mesma moça que vinha nos atendendo, desde ontem, quando chegamos, veio perguntar o que queríamos comer, ostentando um sorriso amarelo que, para mim, dizia “eu sei e lamento que só restem, no cardápio, mais uma única opção de entrada e de prato principal, diferentes do que já comeram”. Assim, para fugir da repetição, evitamos pedir os pratos que havíamos comido no almoço de hoje e no jantar da véspera. Escolhemos a única alternativa restante, não utilizada, de cada fase da refeição. Mas, ainda assim, repetimos o iogurte, o mesmo da sobremesa do jantar de ontem, não porque fosse tão bom (era um simples iogurte industrial), mas para variar, pelo menos uma coisa, no nosso jeito de pedir. Rimos, pela primeira vez neste dia.
E jantamos. E jogamos conversa fora. E claro que evitamos falar dos prognósticos do clima de amanhã, ou do frio que se previa, ou deixava-se de prever. Não mencioná-los era um jeito de empurrar com a barriga aquele nada, aquele sentimento de ausência, até a hora de dormir, que, afinal, chegou.
Resumo do dia 16 – Caminho de Santiago
Percurso: descanso forçado, ilhados pelo frio e pela chuva, no Alto do Poio, vilarejo de Padornelo
Distância e ganho de elevação: 0km com 0m de ganho de elevação
Até amanhã!

A maneira como Luiz Carlos fala simbolicamente do “caminho” mexeu muito comigo. Fiquei comovida ao sentir o “caminho” como a nossa vida!
Tão linda a poesia!!! Realmente, não existe caminho a não ser depois dele ser trilhado e nunca há caminhos iguais, além de nunca o viajeiro ser o mesmo. Lembrei-me, e alguma relação deve ter, da fala do nosso poeta: “Quem passou pela vida em branca nuvem e em plácido repouso adormeceu… só passou pela vida, não viveu!” Esse, certamente, não trilhou o “Caminho de Santiago”, e menos ainda numa parceria.
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