Portomarín
O 18º dias no Camino vai ter um preâmbulo especial. Para comemorar um dia delicioso, sem chuva, sem frio, pedalando num jardim do Éden bastante povoado, como merece. Nós saímos de Portomarín pensando como teria sido nosso dia de ontem, caso o comerciante de Vilei estivesse correto. Se vocês se lembram, o dono da loja de souvenires, onde paramos à tarde para comprar imãs de geladeira, havia nos alertado para uma suposta falta de vagas nos albergues daqui e, para nos “ajudar”, fez uma reserva num tal de Hospital da Cruz, que ele dizia estar localizado 8km à frente, num caminho de descidas predominantes: “todo bajada!”, garantiu.
Mas, como já sabem os que leram nosso relato de ontem, nada disso se realizou, porque encontramos vaga, logo na primeira pousada que consultamos, ao lado daquela igreja “linda”, no centro da cidade. Além disso, meus mapas não indicavam nenhuma descida para o trecho que começa em Portomarín. Muito ao contrário, o gráfico de altimetria do percurso só me mostrava subidas íngremes, por certa de 10km, seguidas de subidas menos íngremes, nos seguintes 5km. Voltaremos depois a este assunto. Por enquanto, deixo um exemplo daquilo que eu chamo de Jardim do Éden bastante povoado.

Jardim do Éden, mas muito povoado!
A paisagem do percurso de hoje fala de bosques encantados e flores, de um cenário de ondulações, montes e vales verdejantes—um Éden para nenhum Adão e Eva botarem defeito. Entretanto, o casal primevo ficaria espantado de ver quantos filhos e filhas vieram povoar sua descendência. Quero dizer, trocando em miúdos, que a quantidade de peregrinos que encontramos andando pelas trilhas do Camino, se ontem já nos espantava, hoje ficou ainda maior, tornando o efeito de multidão ainda mais evidente. Por este motivo, ainda que eu, sempre, tenha procurado os momentos mais calmos e desimpedidos para fazer as fotos, foi impossível, em algumas partes da trilha de hoje, evitar uma multitude de figurantes.
O fenômeno, à primeira vista inusitado, ocorre por uma razão simples. A Autoridade Eclesiástica de Santiago de Compostela, por meio da Oficina do Peregrino, concede um certificado de peregrinação somente aos peregrinos que cumpram uma distância mínima, que corresponde a 200km, para os ciclistas, e 100km, para os caminhantes. O certificado, apresentado na forma de um diploma tradicional, em papel-cartão, com dados do peregrino anotados e assinados à mão, é conhecido como A Compostela.

Percorrer 200km significa sair de Ponferrada, a partir de onde encontramos, de fato, muitos ciclistas, mas não atentamos para o fato de não ser somente uma coincidência. Cumprir 100km a pé, por sua vez, exige que se inicie o caminho em Sarria, ou, pelos menos, em Barbadelo, onde passamos ontem, no trecho final da jornada e notamos, de fato, um aumento significativo no número de caminhantes, embora sem suspeitar do enxame de gente, de botas e paramentos pouco usados, que nos esperaria neste e no último dia.
Assim, hoje, atrasamos, propositalmente, nossa saída, numa tentativa de permitir que os caminhantes, em tão elevado número, se espalhassem pela trilha, porque nós não queríamos atrapalhá-los, nem que eles nos atrapalhassem.
Geolocalização e clima
Tendo um tempo extra, antes do café da manhã, aproveitei para recuperar meu precioso sistema de localização de fotos. Com uma conexão de dados um pouco melhor, como tínhamos na Posada del Camino, baixei o aplicativo de geolocalização da Canon no celular da Bia, de modo que eu pudesse ter aqueles registros de posição, nas fotos, que muita falta me fizeram nos últimos três dias.
Ah!, o clima! O clima!—Se avaliado com relação ao frio improvável que vinha nos acompanhando há varios dias, o de hoje parecia ameno e convidativo: 7°C às 9h, com céu nublado, mas sem previsão de chuva.
Então, descemos animados para o térreo, trazendo nossa tralha habitual, e tomamos nosso café da manhã, demoradamente, no bar da pousada. Depois, cumprimos aquela sequência modorrenta, que já se tinha tornado, pela repetição, rotineira: fomos preparando corpos e bicicletas para a jornada que nos aguardava, enquanto ouvíamos o burburinho da cidade e as conversas dos hóspedes e empregados, no avarandado do bar. Enquanto ajustávamos alforges e capacetes, vestíamos luvas e óculos de proteção, o pensamento flutuava por entre os meandros do fundo sonoro que nos envolvia: —Realmente, o galego é um portunhol bem falado!, eu observei. E Bia riu, feliz, enquanto ajustava seu Gps.

Uma subida pelo bosque
Às 9:45h, prontos e paramentados, saímos para a rua. Passamos pela praça central que, em Portunh…, digo, Galego, se chama Praza Conde Fenosa.

Paramos bem ali, onde reina a prefeitura de Portomarín, toda embandeirada e imponente, e descemos pela Rúa de Compostela, para alcançar, pela Av. Chantada, uma ponte secundária, que cruza o Río da Barrela, afluente do Miño, e por aí iniciar a subida, por uma trilha que galga, em ziguezagues pelo bosque, a abrupta encosta das margens destes dois rios, em direção a Castromaior.

Um bosque de carvalhos
A trilha que segue daí percorre um grande bosque ciliar do Río da Barrela e dos córregos que lhe dão origem, uns três quilômetros acima, após Os Montes, onde a trilha passa a seguir bem próxima à estrada asfaltada LU-633. Os primeiros 1.300m deste trecho são os mais íngremes, mas também os mais emocionantes, devido ao clima fantasmagórico da luxuriante mata de carvalhos, ainda jovens e esguios, e o traçado sinuoso da trilha, que vai se elevando pela encosta, num zigue-zague contínuo.
Nos poucos pontos onde o bosque se abre, deixando passar um pouco mais de luz, o amarelo vivo das flores da vassoura ibérica nos enchia os olhos de alegria: —É primavera!

Depois de Os Montes, a trilha segue paralela à estrada até Toxibo e, então, afasta-se para dentro de um bosque silencioso e cerrado, até reencontrar as margens da rodovia na altura de Cabanas do Monte, e assim seguir, até um pouco antes Gonzar.

De volta ao bosque, mais afastado da estrada e dos veículos, reina um silêncio povoado de piados e do murmurejar do vento, no lusco-fusco, como se o mundo moderno pudesse ser esquecido, por um instante. Mas, logo adiante, para completar a primeira hora de percurso, surge, por entre as silhuetas de grandes árvores, o vilarejo de Gonzar.

Nunca é demais lembrar como estes pequenos povoados da Galícia são aconchegantes ao olhar, com suas casas de pedra e os telhados de ardósia negra, com fachadas sempre adornadas com alguma flor, uma parreira, um banco para se sentar.


De Gonzar até Castromaior, o bosque se torna menos denso, mas a intensa floração amarela da vassoura ibérica, vem compensar e colorir as grandes clareiras e nacos de campos, que se abrem pelo caminho.


O trajeto é francamente ascendente, em todo este trecho, que vai de Portomarín até passarmos por Castromaior, com 9,5km de percurso. E mesmo depois daí, não se para de subir.

O Conto do Vigário, que não vingou
Nesta altura da jornada, já nos perguntávamos onde estava a bajada de que falava o comerciante, na tarde de ontem. Eu e Bia, enquanto subíamos as encostas, ofegantes, trocávamos pequenas ironias sobre a bondade do cidadão de Vilei, que tentara nos proteger de ficarmos sem abrigo em Portomarín:
—Quanto será que medirão os 8km de bajada até o Hospital da Cruz, posto que já percorremos 9,5km e continuamos subindo?, peguntava, retoricamente, eu.
—Com toda esta bondade e vontade de ajudar, quanto será que o gentil comerciante recebe de comissão, por cada hóspede que indica?, retrucava Bia.
Depois de Castromaior, sorrindo, e a cada vez, pausando, com silêncios concentrados, nossas penosas ascenções, mas logo retomando o fôlego num remanso da subida, este pequeno jogo de ironias, que se estabeleceu entre nós e a lamentável memória de um sórdido comerciante, seguimos, ainda e principalmente, para cima. Num momento, porém—creio que a partir do km 10,5, quando a inclinação da trilha se torna um pouco mais suave, a paisagem começou a se abrir e se pôde ver, do topo do planalto, bem mais ao longe.

E era, pois, que nos aproximávamos d’O Hospital, cujo alto é o ponto de maior elevação do percurso do dia. A paisagem mais larga e aberta, além de deixar o horizonte mais longínquo, também permitia-nos perceber, irrecorrivelmente, a enormidade de gente que, neste ponto, trilhava o Camino.
Como logo verificamos, o bairro Alto da Cruz se localiza a 12km e 410m de elevação depois de Portomarín, passagem que só alcançamos após 1h40m de percurso ascendente, áspero, duro de pedalar.
Então, no alto da mais elevada colina, avistamos uma placa que indicava, à esquerda de onde estávamos, numa encruzilhada da trilha, o albergue Hospital da Cruz.

Lembramos, mais uma vez, do comerciante de Vilei e seu “conto do vigário”. Pasmo, recordei, de novo, que ele garantira para Bia que o percurso de Portomarín até aqui seria “todo bajada”.
Que mentiroso! Havíamos subido 420m, em apenas 12km de trajeto!
Imaginamos o que seria, se tivéssemos nos fiado nele e não procurado a pousada de Portomarín. Teríamos enfrentado toda esta subida, que se somaria, numa mesma jornada, aos 820m que já havíamos subido ontem.
Que infâmia! O comerciante inescrupuloso não hesitara em tentar nos enganar, por dinheiro, provavelmente, ainda que nos fizesse—como quase fez—penar mais doze duros quilômetros de subida adicional.
Vergonha alheia, foi o que sentimos naquela hora.
Esto no es possible. No es invierno!
Passado o espanto e a revolta moral, prosseguimos. Logo passamos por Ventas de Narón, onde termina, a 14km de percurso, o grande trecho ascendente, depois cruzamos Lameiros e chegamos, aos 17km, ao vilarejo de Ligonde, próximo ao Río de Irixe.

Dando graças pelo fracasso do plano diabólico do comerciante de Vilei e encantados com o clima pastoral desta simpática vila, onde o sol acariciava as pedras coradas do casario e aquecia um casal de idosos, que por ali descansava, seguimos em direção à cidade de Palas de Rei, o maior centro urbano desta área.

Depois de cruzar o Río de Irixe, quando passamos por Airexe, ladeando a Igrexa de Santiago de Ligonde, vimos um grupo de peregrinos japoneses, que se aglomerava em torno de uma espanhola corpulenta, que provavelmente os estava guiando pelo Camino e conversava ao celular.
Como ela falava bastante alto, talvez por causa de uma má conexão, era impossível não ouvi-la. Pois, assim ela dizia, aos brados:
—Esto no es posible! Es como noviembre! No estamos en invierno!
Bia e eu nos entreolhamos e sorrimos. De fato, não era um inverno, mas, como em toda esta nossa estada no Camino, parecia. E até para os locais!
Palas de Rei
Com o céu se abrindo entre grandes nuvens, seguimos pedalando, já num percurso, na média, descendente, entre montanhas ensolaradas e campos floridos, como se o belo fosse natural e esperado, em qualquer sítio deste grande mundo.
Depois, continuamos por um trecho bastante acidentado, em que a trilha sobe e desce repetidas vezes, como já vinha acontecendo desde Airexe e, assim, seguia, passando por Portos, Lestedo e, depois, Os Valos, numa sucessão de paisagens de tirar o fôlego.





Em alguns lugares, a trilha também atravessava bosques mais fechados, mas depois se aproximava mais da estrada, como acontece a partir de A Brea e As Lamelas, para, na sequência, dela se afastar, como em O Rosario.

Na chegada aos arredores da cidade de Palas de Rei, ainda que a paisagem começasse a mostrar um caráter mais urbano, alguns descampados, entre as casas rurais da periferia, ainda mostravam as cores da primavera galega.

E desta forma, muito bem recebidos, chegamos a Palas de Rei, onde deixamos, momentaneamente, o percurso do Camino, para procurar uma pizzaria, que anunciava em placas na rua, mas que, como lá descobrimos, só abriria cerca de uma hora mais tarde. Fizemos meia-volta. Retornamos ao trajeto original e, no meio da Travesía Peregrino, encontramos um bom restaurante, onde fizemos uma longa pausa. Foi um almoço especial, porque o restaurante era aconchegante e a comida excepcional: tomamos caldo galego, suculento e fumegante, de entrada, e saboreamos uma ternera asada com batatas, regada ao vinho da casa e água gasosa com limão. Uma delícia!

Hórreo
Ao longo do Camino, por muitas vezes, víamos aquelas casinhas esquisitas, elevadas sobre palafitas de pedra, sempre ao lado das casas rurais, mas não sabíamos do que se tratava. Poderiam ser locais de maturar o vinagre? Seriam depósitos para adubos orgânicos?—Não sabíamos. E não era.
Na tradição ibérica, há um modo particular de se armazenar os grãos, o queijo e outros produtos rurais, que predomina em todo o norte da península, desde tempos imemoriais. O que, por um bom tempo, nos intrigou, eram os hórreos.

Como verificamos na internet, os hórreos são celeiros tradicionais, feitos de pedra, na Galícia e no norte de Portugal, onde são chamados de espigueiros, ou de madeira, como é mais comum nas Astúrias. São os complementos naturais das casas de pedra e telhados de ardósia negra, que tanto nos encantaram.

Um companheiro inesperado
Por volta das 14:15h, depois da grande pausa para o almoço, retomamos o caminho. Saímos da área urbana de Palas de Rei e, logo, encontramos um companheiro inesperado: um cão pastor, de pelo claro, que começou a nos acompanhar. Às vezes, ele ficava para trás e pensávamos que tinha ido embora, mas, logo, ele nos alcançava outra vez. Depois, ele nos ultrapassava e sumia, à frente, pelo caminho, como se estivesse aborrecido com nossa lentidão. Mas, um pouco adiante, voltávamos a encontrá-lo, com aquela cara de bonachão, nos esperando pacientemente, como foi o caso nesta foto. Parecia até que ele queria ser peregrino, como nós.

Claro que achamos muito legal, aquele companheiro de caminho, que escolheu nossa companhia. Mas preocupávamos com a possibilidade dele avançar demais e se perder de casa. Imaginávamos que ele logo se cansaria e retornaria para sua vizinhança habitual, mas não foi assim. Embora ele não tivesse coleira, nem nenhum tipo de identificação, era um cão saudável demais para ser cachorro de rua. Apenas parecia estar disposto a nos acompanhar pelo caminho, pelo mundo afora.

Num momento, tendo nos seguido por mil e quinhentos metros além de Palas de Rei, foi uma das ocasiões em que o companheiro nos deixou, se adiantando até o perdermos de vista. Então cruzamos, sem ele, o Rego de Roxán e subimos por algum tempo, para depois descer, abruptamente, e chegar a O Cotón. Eis que lá, cerca de dois quilômetro adiante, estava nosso amigo canino, olhando como quem acha natural esperar pela matilha, que éramos nós.
Não quero ser repetitivo, mas devo dizer que os bosques deste trecho são fenomenais! Por eles seguimos, adiante, deslizando pelas baixadas, subindo encostas e descendo ladeiras, pelo meio de bosques misteriosos e campos iluminados, que se alternavam, numa dança mágica e apaixonante. Descendo ao Río Pambre, passamos por Ponte Campaña e subimos o monte, até Casanova, para logo descer a Porto de Bois, cruzar o Rego do Vilar e subir para A Campanilla. E nisso tudo, ainda, ele nos seguia—bem, às vezes, liderava, nosso simpático companheiro peludo.

As fazendas por que passávamos eram lindas. Com campos separados por sebes e pomares, exibindo diferentes tons de vegetação, que se estendiam e se alternavam por suaves colinas, como uma colcha de retalhos coloridos.

Subindo ou descendo, sempre nos acompanhava o pastor branco, como se fosse um guia, ou guardião, como aconteceu na descida que levava ao Rego do Vilar, onde ele acompanhou, lado a lado, a descida de Bia.

Chegando a Leboreiro, já 9km distante de Palas de Rei, pareceu-nos que nosso companheiro havia desistido de serguir-nos, de uma vez por todas. Pensamos ser melhor assim, porque já nos causava evidente preocupação a possibilidade dele se afastar demais de seu terreno conhecido, até não saber mais voltar. Entretanto, é difícil negar que, pelas frestas do bom-senso, uma sutil sensação de desapontamento e abandono, se infiltrava.

Seguimos. Cruzamos o Río Seco, por uma bela ponte de pedra e seguimos em frente, ondulando pelas colinas, às vezes tangenciando a rodovia, em busca do vale do Río Furelos e uma ponte bem maior.

E então foi, que antes de subir para Melide, encontramos o Río Furelos, e a linda ponte de três arcos, que leva o peregrino que a cruza, diretamente, ao centro do povoado que lhe toma o nome.
Furelos
Um pouco adiante, entramos em Melide e galgamos uma subida curta, até uma pequena praça, onde havia uma cruz de pedra e—adivinhem só!—nosso amigo canino, que lá postado, estava nos esperando. Era quase impossível de acreditar, mas nosso amigo peludo completava, a este tempo, 14km companhia, a partir das cercanias de Palas de Rei.
Portanto, saímos de Melide quando já passavam das quatro horas da tarde, escoltados por nosso pastor branco. Passamos por O Carballal e seguimos por um extenso bosque, até o Río Catasol, onde encontramos uma curiosa ponte rústica, de pedras grandes e irregulares, que ousei cruzar com a bicicleta, mas desmontado.

Lá encontramos um grupo de ciclistas italianos, que faziam o Camino acompanhados de um carro de apoio que, neste ponto teve que seguir por outro trajeto.
Eles perguntaram se o cão era nosso, porque também já o haviam encontrado outras vezes, durante o percurso. Manifestaram, também, preocupação pela possibilidade do animal se perder e não conseguir mais voltar para casa. Mas, ainda que juntos tentássemos mandá-lo embora, nada surtia efeito. Ele se afastava um pouco, mas logo aparecia atrás de nós, de novo. Queria prosseguir conosco.

Deste modo, passamos por Raído e Barreiro de Abaixo e descemos para cruzar o Rego de Valverde. Depois seguimos por um trecho plano, cheio de campos floridos, lindo de doer.

Pois, então, foi ao chegar em A Peroxa Boente, sem nenhum aviso ou despedida, que nosso mascote nos deixou. Ainda contamos com a volta dele, por algum tempo, mas isso não se concretizou. Ele sumiu.
No total, o pastor branco nos seguiu por cerca de 20km, incansável e companheiro, para então, de repente e tão inexplicavelmente como começou a nos seguir, desaparecer por completo. Voltamos a ficar, mais uma vez, sozinhos. Dois, no Caminho.


Lavando roupas em Arzua
Já avançava a tarde, a esta altura, mas faltava-nos pouco para completar a jornada: eram apenas cerca de 9km até Arzua e a merecida parada para o pernoite. Entre aliviados, por ver que nosso amigo canino tomara seu caminho de volta, mas, ao mesmo tempo, tristes, por não ter mais sua companhia, continuamos em frente.

Passamos por Trigás e seguimos, por entre belas fazendas, com campos produtivos, alguns arados, outros em pleno crescimento, formosos e ricos de vegetação.

De Rivadiso seguimos, cruzando esta linda planície, no vale riscado pelo Rego Iso, por um esplêndido fim de tarde, quando já os peregrinos caminhantes se tinham recolhido, para um descanso merecido, e não eram mais vistos pelas trilhas e estradas.

Do início, em Palas de Rei, até chegarmos a Arzúa, foram mais de 8 horas de estrada. Mas foram horas de prazer, alegria e deslumbramento!
Na chegada ao destino, paramos para uma foto, na praça central. Depois nos sentamos num dos bancos que ali havia e localizamos um apartamento para peregrinos, pelo aplicativo do booking.com. Era um primor de hospedagem. Num prédio inteiro dedicado ao acolhimento de peregrinos, tinha sala e suíte, servidos por uma cozinha equipada e área de serviço com máquinas de lavar e secar, de uso comum às unidades do andar.

A moça que nos atendeu no prédio, nos entregou as chaves, mostrou o apartamento e as áreas comuns e nos explicou como utilizar as máquinas de lavar e secar roupas, que funcionavam com um temporizador que, frizou ela, aceitava somente moedas de dois euros. Somente de dois euros, repetiu, e nos forneceu uma dessas preciosas moedas, cujo valor foi acrescido à estadia. Tudo resolvido. Parecia.
Uma vez instalados e sozinhos, fomos ao supermercado, que ficava próximo, na mesma rua, para fazer as compras para o lanche da tarde e o café da manhã do dia seguinte. Na volta, preparamos as roupas que precisávamos lavar, o que significava quase todas as peças que tínhamos, e usamos nossa preciosa moeda de dois euros, no temporizador da lavadora.
Ei! Você aí! Me dá uma moeda aí!
Depois de tomarmos nossos banhos, voltamos para inspecionar o resultado da lavagem e constatamos que o tempo concedido pela nossa única moeda de dois euros, não fora suficiente para a lavadora completar seu cliclo, de modo que as roupas estavam, ainda, encharcadas e com traços do sabão.
Desastre. Depois de discutirmos as alternativas, resolvemos que eu iria vestir o que sobrara das minhas roupas urbanas e descer à rua para procurar algum lugar onde trocar duas moedas de um euro, que tínhamos na carteira, por uma valiosa moeda de dois. Descendo, na calçada, olhei para um lado e para o outro e resolvi cruzar a rua. Tentei a sorte num bar de albergue, onde algumas pessoas, distribuídas por cadeiras e mesas de estrutura tubular, conversavam e tomavam café. A balconista, por sorte, foi prestativa e trocou o dinheiro, como eu precisava. Satisfeito, fechei na palma da mão a preciosa moeda, do modo como quem protege um diamante raro, e segui, de volta ao nosso prédio. Subi ao apartamento e encontrei Bia, na área de serviço comum. Inserimos a moeda no temporizador da lavadora e, meio sem jeito, fomos descobrindo como fazer a máquina completar o ciclo que se interrompera.
Naquele momento, nos demos conta de que, para usar a secadora, depois da lavagem, íamos precisar de mais uma moeda. Mais uma daquelas moedas de dois euros, tão raras, que não tínhamos. Ponderamos que seria muita cara-de-pau pedir, de novo, para a balconista do café. Resolvemos, no final, pedir mais uma moeda à moça que administrava o prédio, que morava num apartamento em outro andar do próprio edifício.
Sucesso. Bia ligou para ela, que, vários minutos depois, apareceu com uma reluzente moeda de dois euros, recebendo o mesmo valor, nas moedas fracionárias que ainda tínhamos. Pelo tempo que se passou entre o telefonema e a chegada da moça ao nosso apartamento, supomos, constrangidos, que ela já devia estar recolhida para a noite e teve que se trocar, novamente, para vir nos atender. O que se haveria de fazer?
Eu, por consolo, em pensamentos, não conseguia entender porque usavam um temporizador que só aceita moedas de dois euros, exatamente a espécie monetária que nos parecia a mais rara de todas, por aqui. Mal sabia eu, que, no final, o tempo concedido por mais esta moeda, seria insuficiente, também, para a secagem das roupas.
Pois foi. A maioria das peças saíram da secadora ainda úmidas e todos os nossos recursos, tanto em moedas, quanto em alternativas para obtê-las, já tinham sido investidos. Não tínhamos mais nem os trocados suficientes para dar em troca de mais uma daquelas preciosidades de dois euros.
A solução foi utilizar os varais internos, que estavam disponíveis na área de serviço, ao lado das duas máquinas. Então, estendemos o melhor que pudemos as peças lavadas e parcialmente secas e nos recolhemos, na esperança de que, pela manhã, tudo estivesse seco e pronto para usar.
Amanhã, saberemos. Amanhã, será nosso último dia no Camino. Amanhã, chegaremos a Santiago!
Resumo do dia 18 – Caminho de Santiago
Percurso: de Portomarín a Arzúa
Distância e ganho de elevação: 55,8km com 1.211m de ganho de elevação
Até amanhã!
