Ponferrada, león
Saindo do hotel Alda, no centro de Ponferrada, só a brisa fria, embora moderada pelas aparições de um sol tímido, entre nuvens poeirentas, poderia indicar que o clima seria, mais uma vez, o grande protagonista do dia. Mas a temperatura amena e a lembrança viva de vários dias luminosos, passados nesta linda província de Castilla y León, nos ajudavam a manter o tipo de ilusão que a sabedoria popular chama de “olhos de quem não quer ver.” Pois foi com esses olhos que partimos para a primeira tarefa do dia, que era a de trocar dólares por euros, coisa que, já aprenderamos em Logroño, deve-se fazer numa agência do Santander. (Essa é uma dica importante para quem vai trilhar o Caminho: nos vilarejos e albergues, só circula o dinheiro em espécie; cartões de crédito ou débito não são, via de regra, aceitos e a maioria dos bancos só faz câmbio para seus próprios clientes.)
Então, fomos a uma agência do Santander, que ficava próxima ao hotel onde nos hospedamos, fizemos o câmbio e, às 10:30h da manhã, com confortáveis 18ºC de temperatura e a carteira devidamente provida de euros, saímos em direção a Vega de Valcarce, supostamente nosso destino do dia, mas que, na realidade, só alcançaríamos amanhã.

Pela planície se vai bem.
Numa visão geral, os primeiros 25km do trajeto, a partir de Ponferrada, são quase totalmente planos, com apenas uma subida passível de menção, de 2,5km de extensão, a partir a ponte sobre o rio Cúa, em Cacabelos, até um certo ponto entre os vilarejos de Pieros e Valtuille de Arriba.


Entretanto, esse percurso, aproximadamente plano, do começo da jornada, se olhado mais em detalhe, apresenta diversos contrastes.
Comecemos, então, pela saída de Ponferrada, que nos fez conhecer os arredores do lado noroeste da cidade, onde passamos ao largo de uma pequena zona industrial (ver a primeira foto desta postagem) e seguimos por uma estrada simples, asfaltada, mas sem muito tráfego e sinalizações, que serpenteia entre pequenas propriedades e grupos esparsos de casas rurais.

Devagar também se chega.
Cerca de 40 minutos após a partida, passando pelo povoado de Camponaraya, já começam a aparecer as vinhas, sempre emolduradas por montanhas azuladas, a noroeste, ou pelos bosques circundantes.

Um pouco antes de cruzarmos a Autovia del Noroeste e deixarmos o asfalto da cidade, eu havia me adiantado, em relação à Bia, e por isso parei um pouco para esperá-la. Neste ínterim, passava um grupo de peregrinos à pé e, entre eles, um casal idoso, portando bonés com uma bandeirinha do Brasil impressa na aba. Eu lhes disse “Bom dia!” e sorri para eles, que devolveram o cumprimento e me desejaram um “Buen camino!”, comentando que, de bicicleta, eu logo chegaria a meu destino. Foi ao que respondi, para visível concordância e satisfação deles:
—Devagar também se chega!
Verdade. Mas, o Caminho sempre traz surpresas e dificuldades inesperadas, como sempre faz um gênio caprichoso. Eu não sou bom de augúrios, mas, em retrospectiva, percebo que o clima, já neste início de jornada, dava mostras de instabilidade, alternando momentos de céus azuis, em que o sol fazia breves aparições, com cenas mais sobrias, com nuvens cinzentas e carregadas, com brisas frias e sibilantes, numa metamorfose constante, que completava seus ciclos em pequenos intervalos de tempo.


O misterioso pássaro cuco
Num pequeno bosque, de árvores típicas do norte europeu, um pouco antes de alcançarmos Cacabelos, nos deparamos com aquela pãina branca, que já havíamos presenciado em outros locais, nos dias anteriores. Trazida pelo vento, ela formava um alvo e fino depósito sobre o solo marrom escuro, como uma rala e efêmera neve de primavera.

E foi nesse bosque mágico que tivemos o prazer de ouvir, mais uma vez, o inconfundível canto do pássaro cuco, que já tínhamos presenciado em outros bosques da região de Castilla y León, mas sem nunca conseguir vê-lo.
Desta vez, para não fugir à regra, por mais que procurássemos por entre as ramadas, não conseguíamos localizá-lo. Bia, então, teve a boa ideia de fazer um vídeo, com o celular e, mesmo que só se possa ver nele a folhagem do bosque, distingue-se bem, ouvindo, suas duas notas inconfundíveis, em meio aos piados agudos de outros pássaros: o canto do cuco.
Um pouco depois do bosque, cruzamos uma estrada asfaltada, que identifico, agora no mapa, como a LE-713. Nela, já tinhamos pedalado hoje, no trecho que percorremos, desde a saída de Ponferrada, até cruzarmos a vila de Camponayara. Alguns minutos depois, entramos na pequena cidade de Cacabelos, que possui um museu de arqueologia, que não tivemos tempo de visitar, mas que pode ser bem interessante, porque tem no acervo um conjunto de ferramentas do homo heildelbergensis, do período paleolítico, encontradas em escavações realizadas a partir da década de 1960, no sítio de Terrazas del Cúa (para ver mais informações, visite Marca.)

Viver em Plaza Del Fondo Del Lugar é tão bom como viver em Ponferrada
Cruzando-se o Río Cúa, novamente pela LE-713, logo se inicia a primeira subida, que mencionei anteriormente. Ela nos leva pelo vale do Arroyo de Valpedroño, onde se localiza o vilarejo de Pieros. Um pouco depois, dobramos à direita, deixando o asfalto para trás, e seguimos subindo, até atingir-se o ponto mais alto do trecho, a 600m de altitude, em meio a belos vinhedos. Este terreno, relativamente alto, que se segue à subida de Pieros, é dominado, um pouco à frente e abaixo, pelo vilarejo de Valtuille de Arriba, cujo nome faz referência a uma tal Valtuille de Abajo, que de fato existe, mais ao sul, na direção do curso do Arroyo de los Valtuilles, e que não visitamos.
À saída da Valtuille que foi visitada, a de Arriba, encontramos um curioso beco, dominado por uma casa em ruínas, com um nome longo mas, suponho, bem apropriado:

Repetindo o que vinha acontecendo, com alguma frequência, por aqui, o local me fez parar para pensar sobre os modos e jeitos de vida, que neste Caminho se vê: nós, ciclo-peregrinos, perambulando por vilarejos perdidos no nada, vendo alguns deles com apenas um punhado de habitantes e ladeados por ruínas como essa, no “fundo do lugar”, onde alguma gente vive e não anseia por mudar-se, por exemplo, para León. Enquanto isso, no Brasil, as pessoas vivem se amontoando em grandes centros urbanos, como São Paulo, com milhões de habitantes, apesar da péssima qualidade de vida que os egressos de lugarejos rurais encontram nas favelas e periferias. Há alguma dúvida sobre qual “fundo do lugar” seria preferível?
Domínio dos vinhedos
A partir de Valtuille de Arriba o vale se alarga e, com ele, a extensão dos vinhedos. A noroeste, a presença das linhas de montanhas, que perfazem os primeiros contrafortes de um impressionante maciço e dominam o horizonte, nos recorda da proximidade do segundo maior desafio do Caminho Francês, nosso próximo desafio: a subida que marca o final ocidental da província de Castilla y León e o início da Galiza (Galícia)—o Cebreiro.

Mas não adiantemos os desafios de amanhã. De momento, avançamos pelas colinas ondulantes que antecedem Villafranca del Bierzo, primeiro descendo ao Arroyo de Valdaiga, depois subindo entre os inúmeros vinhedos que, entre as duas Valtuilles, se espalham à volta das vinícolas locais: Losada Vinos de Finca, Viña de Los Pinos, Vinos Valtuille, Estéve Bodegas y Viñedos, Bodegas Adriá.
O Caminho, em meio às colinas, entre Valtuille de Arriba e Villafranca del Biezo
É um caminho apaixonante, onde o ciclista de montanha reencontra-se com o matiz principal de sua paixão esportiva: subir e descer suavemente, numa estrada de chão serpenteante, entre colinas, campos e bosques, a sentir a brisa no rosto, num carrossel de emoções e solavancos, onde o esforço intenso da subida logo encontra o prazer de soltar-se pela encosta descendente, em direção ao vale secreto que, à frente, se avizinha.

Ao final duma dessas curvas, afinal, Villafranca se mostra. E, logo após, entramos na cidade, recebidos pelo seu castelo rotundo e o antigo Convento de los Padres Paúles—hoje o hotel-escola San Nicolas el Real—, de onde presenciamos as primeiras rajadas de ventos fortes, que prenunciavam as dificuldades da tarde que se aproximava.


Almoçamos num restaurante da Plaza Mayor, onde saboreei um bom joelho de porco. Depois da refeição e merecido descanso, seguimos em direção ao Río Burbia, passando por uma simpática pracinha ensolarada.

Cruzar a ponte sobre o Río Burbia nos deu uma linda visão dos limites da cidade, que se estende quase totalmente à margem esquerda do rio, contida, do outro lado, pelas montanhas que se elevam rapidamente, entre o próprio Burbia e o Río Valcarce, que nele deságua, logo abaixo de onde estávamos.

Com o tempo virando, vá pelo vale, não pela montanha!
Foi ao pé dessas montanhas que cometi um erro de avaliação crucial, neste 14º dia do Caminho. Ocorre que, nesta saída da cidade, logo após cruzar a ponte e estando ao pé das grandes montanhas, o peregrino deve optar por um de dois trajetos alternativos, a fim de prosseguir no Caminho. O trajeto tradicional segue pelo vale, tomando-se a Calle Concepción, que depois segue, saracoteando em torno da carretera, com muitos trechos nela, ou a seu lado. O trajeto alternativo, sobe a montanha pela Calle Pradela e prossegue corcoveando pelas cristas de montanha, de um ponto alto a outro mais elevado, até, no final, descer desabaladamente ao vilarejo de Trabadelo, onde os dois trajetos se reencontram. Sem perceber os primeiros sinais da virada de tempo, eu segui os ditames da minha aversão pelo asfalto e pela monotonia das carreteras: optei pela montanha. E deu no que deu.

O trajeto que escolhi—e por onde levei minha companheira de Caminho—é lindo e terrível! Sobe inexoravelmente a montanha, por uma estreita e íngreme ladeira, que parece não ter fim.

Lindo e terrível é um bom epíteto para a trilha que se inicia na Calle Pradela. Com inclinações que chegam a mais de 20%, a subida é impossível para pedalar, mas linda… Sim. Linda, ela é.
Vista de Villafranca, ficando para trás Flores da montanha Villafranca mais distante As encostas do vale do Rio Valcarce Vista da carretera, no fundo do vale Visão total de Villafranca Uma das subidas com inclinações acima de 20%
Como a subida se mostrava extremamente difícil, de tempos em tempos, eu parava, deitava minha bicicleta no chão e descia a pé para ajudar Bia a empurrar a sua, morro acima, o que fazia nosso avanço penoso e demorado. Depois de cerca de um quilômetro de incrível ascenção, que nos exigiu mais de 70 minutos de esforço extenuante, as inclinações se amenizaram um pouco, para nosso alívio, tornando-se até possível pedalar por alguns trechos (mas em muitos outros, não.) E o caminho não parava de subir, embora tentando nos animar, a todo tempo, com essas lindezas, que são as flores da montanha.

A chuva… a chuva…
Depois de tanto esforço, já há quase duas horas subindo sem parar, ainda não se via o topo daqueles montes sem fim. A intensidade do vento, que vinha crescendo lentamente, desde nossa saída de Villafranca del Bierzo, só fazia aumentar. Ora já fustigava as campinas, fazendo-as ondular, e a temperatura, aos poucos, caía. Eram, então, perto das 16:30h e o céu, em claros, evidentes sinais, anunciava chuva.

Aos 33km de percurso, após 6 horas de esforços contínuos, talvez um pouco depois de alcançarmos o ponto culminante da subida e estarmos próximos do acesso ao vilarejo de Pradela, após o descampado onde se localizam as antenas de comunicação desta região, a chuva começou. Fina e gelada, no início; mais forte e mais gelada, depois.

Desviamo-nos de Pradela, que ficava fora e ao norte de nosso caminho, com apenas um único e pequeno albergue. Chegando à Calle Principal, asfaltada, que de lá vem, tomamo-la à esquerda e iniciamos a vertiginosa descida, em direção a Trabadelo, sempre fustigados pelo vento e pela chuva gelada. A temperatura, que havia ultrapassado os 20ºC, em Villafranca, havia despencado para algo em torno dos 7ºC, na altura da torre de comunicações e, com a chuva, mesmo com a rápida queda de altitude, na descida, baixado para 6ºC. Nem faço palpites sobre a sensação térmica.

Ao chegarmos a Trabadelo, Bia apresentava sinais de hipotermia. Paramos num Albergue, logo depois da pracinha do Ayuntamiento, onde, entretanto, não havia quarto vago para hospedagem, mas havia, ao menos, um chá quente, numa sala aquecida.
Aos poucos, Bia foi se recuperando da intensa sensação de frio, que lhe dava tremores e uma leve náusea. Queria ficar nesse albergue, ainda que fosse num leito em quarto comum, compartilhado. Enquanto isso, eu conversava com a dona do albergue e lhe pedia para telefonar aos outros albergues da vila, a fim de achar-nos uma vaga, num quarto privado.
Em resumo, seria impossível prosseguirmos, nesse dia, até Vega de Valcarce, como era nosso plano inicial, ainda que estivéssemos tão próximos de lá, a apenas 7km, seguindo pelo vale. Localizamos, felizmente, um quarto privado na Casa Rural Os Arroxos, a apenas 400m de onde estávamos, e lá nos hospedamos.

O castigo da montanha.
Nada parece ser por acaso, neste Caminho. Cada passo, cada escolha, tudo tem seu custo. Pois não foi só a Bia, com a hipotermia, que pagou pela minha ousadia de enfrentar a montanha, num dia de clima desfavorável. No final dessa epopéia que, recordemos, começou e resultou da minha escolha pelo caminho da montanha, descobri que havia perdido meu celular, em algum ponto da subida.
Aqui cabe uma explicação sobre o sistema de localização das câmeras fotográficas da Canon, como as que utilizo. Por algum motivo, que desconheço (mas desconfio que seja devido ao alto consumo de energia dos aparelhos de Gps, que reduziria acentuadamente a capacidade de operação da câmera ou exigiria um redesenho de suas baterias), a Canon não provê sistemas de localização embutidos, como ao menos um outro fabricante faz (Nikon), mas apenas um sistema auxiliar que conecta a câmera ao celular e empresta deste o sistema de localização. Feita a conexão, é um aplicativo, no celular, quem vai registrar as localizações das fotos e transmiti-las para a câmera, ao final do dia ou quando assim comandado pelo fotógrafo. Por este motivo, eu sempre levo o celular num bolso interno do alforge de guidão da bicicleta, onde acomodo a câmera, que não pode ficar distante do celular, na hora de bater as fotos, a fim de que o sistema funcione com precisão.
Então, é muito provável que, em algum momento, eu não tenha fechado totalmente o zíper do alforge de guidão e, numa das vezes em que parei e deitei minha bicicleta no chão, para descer e ajudar a Bia, meu celular escorregou, do alforge para o chão, sem que eu percebesse.
Sem celular; sem localização. Então, daí em diante, todas as fotos ficaram sem o registro de localização, que uso normalmente para verificar o sítio exato de cada foto. E este “daí em diante” incluíu o dia de hoje. Porque, embora o celular tenha registrado todas as localizações, até o momento em que foi perdido, não era mais possível operá-lo, para transferir estas informações para a câmera.
Por este motivo, precisei fazer um trabalho minucioso de cruzamento dos horários precisos em que as fotos foram batidas, comparando-os com o registro de trajeto, gravado pelo Gps que levo na bicicleta, a fim de poder reconstituir o ponto de localização de cada foto, sem o quê, o relato que você leu acima não teria sido possível.
Uma boa questão para refletir: você subiria, de volta, a montanha, para tentar recuperar o celular, mesmo sabendo que poderia não o achar, ou que ele poderia ter-se quebrado, devido à queda ou à chuva que nos pegou na descida?
—Eu não subi.
Resumo do dia 14 – Caminho de Santiago
Percurso: de Ponferrada a Trabadelo
Distância e ganho de elevação: 38,6km com 816,3m de ganho de elevação
Até amanhã!

E o texto continua lindo, poetico, as fotos incriveis e vimos que a ponte ferrada tinha um nome aprpriado!
Fiquei admitada com a coragem da minha nora! Ser mulher do Luiz Carlos nao e nada facil! Eu ja sabia disso, mas nao pensei que fosse tanto!
E esse cuco misterioso me ficou na memoria…
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Me lembrou do relógio da copa, da casa de infância.
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